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Deus não é um manipulador

  • Gile
  • 3 de jun. de 2018
  • 8 min de leitura

(Escrito em 09/06/2012)

Há uma grande nuvem sobre o pensamento humano a respeito da soberania divina. Grande parte das pessoas vive confusa a respeito de qual grau de influência Deus realmente exerce sobre nós. Ele é o agente por trás de cada ato (dos maiores aos menores) em nossas vidas? Do espirro ocasional à vida transformada, Ele governa tudo como um manipulador de marionetes? Ou está tão distante de nós como o poente do nascente? Qual o Seu grau de influência no universo?

A resposta da Escritura é enfática: nem tanto ao céu, nem tanto ao mar.

Em primeiro lugar, o que se entende por autoridade e soberania? Soberania é o direito de um soberano, é a governança sobre sua área de influência. [Conforme definida pelo Banco Mundial, no documento Governance and Development (1992), governança é “o exercício da autoridade, controle, administração, poder de governo. (…) É a maneira pela qual o poder é exercido na administração”[1]. Deus é soberano, o que significa que sua vontade – ao final – prevalece no universo. Contudo, não implica em ação direta em todos os meios. Precisamos diferenciar a vontade directiva da vontade permissiva de Deus (i.e., compreender a governança de Deus – o modo como Ele exerce sua soberania).

Sua vontade directiva implica ação divina direta em um fato, essa ação pode ser imediata ou preordenada. Como exemplo de Sua vontade directiva preordenada, Deus criou as leis naturais que regem a natureza – deu instinto aos animais; como sua mãe faz com os objetos na estante da sala, colocou cada astro em seu devido lugar; deu um espírito e uma alma ao homem – criou cada coisa dando a cada uma delas um propósito. Porque quem cria tem direito de propriedade (Salmo 24.1-2), i.e., autoridade sobre a criação. Deus fez; logo, Ele determina para quê (Romanos 9.20-21; Isaías 45.9-10). Sua vontade directiva preordenada também se vê no instinto que deu aos animais para que se auto-preservassem (essa é uma das formas pelas quais ele cuida da natureza), mas isso não impede os humanos de predarem determinadas espécies até que elas se extingam, ou que haja escassez de alimentos em determinada área a ponto de algumas espécies não sobreviverem.

"Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros; contudo, vosso Pai celeste as sustenta. Porventura, não valeis vós muito mais do que as aves? E por que andais ansiosos quanto ao vestuário? Considerai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham, nem fiam. Eu, contudo, vos afirmo que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós outros, homens de pequena fé?" (Mateus 6.26,28-30).

Quando Jesus faz tais afirmações não está querendo dizer que Deus, de maneira imediata, sustenta as aves ou veste os lírios. De fato, cada ave sustenta-se através das leis de regulação da natureza, elas instintivamente encontram seu alimento – mas quem lhes proveu instintos? Deus! Da mesma maneira, os lírios florescem tão belos não diretamente pela ação divina, mas Deus é quem direta e ativamente preordenou como eles floresceriam, na criação.

Sua vontade directiva imediata tem como exemplo os juízos pós-arrebatamento da Igreja; naqueles dias, as leis naturais serão desfeitas por ação direta de Deus. A natureza criada e sustentada por Deus será desfeita por ação direta e imediata de Deus (2 Pedro 3.10; Apocalipse 6.12-17; 19.15).

Já a vontade permissiva é vista quando Deus permite que algo ocorra, embora possa impedi-lo. Um exemplo disso é encontrado em Êxodo 9.12; 10.20,27; 11.10; 14.8; onde se diz que Deus endureceu o coração de Faraó. Contudo, é interessante notar que em outros versículos do mesmo livro se lê que Faraó endureceu seu próprio coração: Êxodo 7.13,14; 8.15, 19,32; 9.34. Por quê? Porque embora Faraó tenha endurecido o seu próprio coração, Deus o permitiu fazê-lo.

Imagine que você tomou conhecimento dos planos de um grupo terrorista de atacar um edifício no centro da cidade. Você sabe quando, quem e onde será o fato; mas o ignora. Por causa de sua indiferença milhares de pessoas morrem. Alguns meses após, suponha que o pai de uma criança morta no atentado descobre que você sabia do fato mas não o impediu, ele vem a você e diz: “você matou o meu filho!”. Talvez você replicasse: “ei, espere um pouco, eu não matei ninguém!”. Bom, o pai da criança não está realmente querendo dizer que você puxou o gatilho da arma, mas que você permitiu que aquela tragédia ocorresse, embora a pudesse evitar. O mesmo ocorre com os textos de Êxodo, Faraó foi o sujeito do verbo endurecer, mas Deus foi o “sujeito passivo” do mesmo verbo. Ele poderia evitar que Faraó o fizesse, mas não o fez (vontade permissiva).

Outro momento em que a vontade permissiva de Deus é posta em “ação” é na maravilhosa história de Jó. O patriarca da fé perseverante foi alvo da ira de satanás, com a permissão de Deus:

"Num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o SENHOR, veio também Satanás entre eles. Então, perguntou o SENHOR a Satanás: Donde vens? Satanás respondeu ao SENHOR e disse: De rodear a terra e passear por ela. Perguntou ainda o SENHOR a Satanás: Observaste o meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal. Então, respondeu Satanás ao SENHOR: Porventura, Jó debalde teme a Deus? Acaso, não o cercaste com sebe, a ele, a sua casa e a tudo quanto tem? A obra de suas mãos abençoaste, e os seus bens se multiplicaram na terra. Estende, porém, a mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e verás se não blasfema contra ti na tua face. Disse o SENHOR a Satanás: Eis que tudo quanto ele tem está em teu poder; somente contra ele não estendas a mão. E Satanás saiu da presença do SENHOR. (…) Num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o SENHOR, veio também Satanás entre eles apresentar-se perante o SENHOR. Então, o SENHOR disse a Satanás: Donde vens? Respondeu Satanás ao SENHOR e disse: De rodear a terra e passear por ela. Perguntou o SENHOR a Satanás: Observaste o meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal. Ele conserva a sua integridade, embora me incitasses contra ele, para o consumir sem causa. Então, Satanás respondeu ao SENHOR: Pele por pele, e tudo quanto o homem tem dará pela sua vida. Estende, porém, a mão, toca-lhe nos ossos e na carne e verás se não blasfema contra ti na tua face. Disse o SENHOR a Satanás: Eis que ele está em teu poder; mas poupa-lhe a vida." (Jo 1.6-12; 2.1-6)

O inimigo pôde causar danos a Jó, mas danos restritos – “somente contra ele não estendas a mão” (1.12); “mas poupa-lhe a vida” (2.6). Deus não era o agente por trás das tragédias de Jó, mas Ele as permitiu. Da mesma maneira, hoje, Deus não é o sujeito das catástrofes naturais ou de incidentes trágicos como a queda do World Trade Center (em Nova York), a queda da ponte I-35W (em Minneapolis) ou o Tsunami (na Ásia). Contudo, como naqueles dias, Ele tem um propósito em todas essas vicissitudes modernas – desafiar nossa fé a tornar-se robusta e produzir frutos, tirar nosso foco da caducidade da vida terrena e elevá-lo a meditar e a viver em conformidade com a eternidade que nos aguarda. São bons e dolorosos propósitos; mas ainda assim, bons.

Deste modo, Deus interfere no universo através dos propósitos dados a cada coisa e no julgamento final que realizará, mas os meios ainda estão relativamente livres.

Por que relativamente?

Deus interfere no universo através de um meio, este meio é volúvel – e é o próprio universo criado, sobretudo de maneira direta no coração do homem. Este decide se quer ou não sofrer a influência de Deus. Ele pode resistir a ela ou recebê-la:

“Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele, comigo” (Apocalipse 3.20, grifo acrescido).

“Homens de dura cerviz e incircuncisos de coração e de ouvidos, vós sempre resistis ao Espírito Santo; assim como fizeram vossos pais, também vós o fazeis” (Atos 7.51; grifo acrescido).

Deus interfere em nossas vidas dependendo do quanto permitirmos a Ele fazê-lo. Se o ignorarmos, é como se Ele não existisse para nós – hoje:

“Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes!” (Mateus 23.37; grifo acrescido).

Ele justificou os fieis do antigo testamento não por suas atitudes benevolentes e obedientes, mas por crerem Nele. Suas atitudes benevolentes e fiéis a Deus apenas atestaram sua confiança Nele – e permitiram a Ele influenciar suas vidas. Elas são fundamentais para demonstrar até que ponto, de fato, cremos Nele; mas não são a causa da justificação deles e nossa. Portanto, fé não é apenas confiar em Deus, mas viver de acordo com essa confiança (Romanos 1.17; 4.1-5; Gálatas 3,11; Hebreus 10.38; Tiago 2.15-17).

O zênite da soberania de Deus se manifestará no julgamento de todas as coisas, quando todos comparecermos diante de seu trono. Lembra como definimos soberania? Deus é soberano, o que significa que sua vontade – ao final – prevalece no universo. Ao final!:

“Vi um grande trono branco e aquele que nele se assenta, de cuja presença fugiram a terra e o céu, e não se achou lugar para eles. Vi também os mortos, os grandes e os pequenos, postos em pé diante do trono. Então, se abriram livros. Ainda outro livro, o Livro da Vida, foi aberto. E os mortos foram julgados, segundo as suas obras, conforme o que se achava escrito nos livros. Deu o mar os mortos que nele estavam. A morte e o além entregaram os mortos que neles havia. E foram julgados, um por um, segundo as suas obras. Então, a morte e o inferno foram lançados para dentro do lago de fogo. Esta é a segunda morte, o lago de fogo. E, se alguém não foi achado inscrito no Livro da Vida, esse foi lançado para dentro do lago de fogo.” (Apocalipse 20.11-15).

É, portanto, possível – e, ao mesmo tempo, impossível – viver fora da influência divina. É possível se a pensarmos apenas em Sua ação direta – de fato, Deus age diretamente onde lhe há receptividade. Não que Ele não possa, mas que Ele decide assim o fazer; Ele é tão soberano que até mesmo pode decidir restringir sua ação. Geralmente, Sua ação direta ocorre no coração humano, enquanto na natureza age indiretamente através das leis que a regem (o que não significa que Ele não aja de maneira direta e imediata na natureza e nos eventos que cercam a vida daqueles que o servem).

Concomitantemente, é impossível viver fora do escopo de ação divina se o pensarmos incluindo sua ação indireta no propósito dado a cada coisa – estamos inevitavelmente sobre a influência de Deus na forma como ele organizou e determinou chuvas nas estações próprias, sucessão dia-noite, concepção de um novo ser desde a junção das células gaméticas de um homem e de uma mulher, morte de cada indivíduo existente nesta terra.

Ele interfere em nossas vidas? SIM!

Ele a manipula? NÃO!

Deus não é um manipulador, Ele interferirá em sua vida tanto quanto um amoroso pai o faria, da mesma maneira que um bondoso rei governaria justamente seus súditos ou como um pastor guiaria benignamente seu querido rebanho (Salmos 23).

Sim, nós devemos lealdade a Ele; Ele deu sua vida por nós (2 Coríntios 5.15). Mas Ele não a exige de nós, Ele nos pede que voluntariamente o façamos (Mateus 11.28-30; Marcos 1.17; Lucas 9.23).

Ele pode realizar milagres – alterar as leis que regem a natureza, mudar o curso da história e até mesmo mover o coração dos homens para serem favoráveis ao Seu propósito abençoador àqueles que lhe servem (2 Reis 20.11; Isaías 38.8; Daniel 4.17; 2 Crônicas 36.22-23; Esdras 1.1-11, 5.13-15) - mas essa ainda não é a mais poderosa forma pela qual Ele nos influencia.

Ele nos influencia, mais profunda e poderosamente, na forma como conduz nosso coração, no modo como o transforma para ser conforme o Dele (Romanos 8.29; 12.2; 2 Coríntios 3.18).

1. World Bank. (1992), Governance and development: Washington, Oxford University Press.

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